Where is my mind? — Breve reflexão sobre a “aula online” e o “quadro branco”

Há uma música do Pixies em que o refrão repete ad infinitum o título: “Onde está minha mente?”. Poderíamos tomar essa pergunta a sério de uma maneira metafórica, significando “por onde anda minha mente? Em que ando pensando?”. Mas hoje queria retomá-la, também a sério, só que de uma maneira literal: onde está minha mente? Ou, onde está essa mente que uma linguagem já viciada em fazer sujeito e objeto quase me obriga a chamar de “minha”?
Minha, de quem? Do sujeito. Talvez os chineses e os indianos não dissessem assim. Mas eu digo. Eu digo “eu”. Por que? Por tradição… há uma tradição ocidental que fala e cala através de mim. Fala impondo à minha fala, por exemplo, que se diga minha, quando digo eu. Fala nos binarismos estruturantes que a um só tempo possibilitam e limitam minha fala. Mas enquanto fala através de mim, cala, fazendo crer que sou eu que falo, por minha conta e risco, sem que ela nada tenha a ver com isso.
No princípio do Ocidente, como dizem, era o verbo, o verbo ser. O ser diz o que é. E faz essência. Como assim? Ora, assim mesmo: isso é o que é. Identidade. Mas o que é isso, afinal? Ora, isso é tal e tal como digo. Onde isso é o sujeito e tal e tal o predicado, sabe como? De maneira que o sujeito substantivo, substancial, feito substância, tem tais e tais propriedades fundamentais. É tipo posse. Como o sujeito que tem ob-jetos (aquilo que se põe diante do sujeito).
Mas e essa mente, que digo minha? Então a tenho, como um sujeito tem objetos? É objeto para um sujeito? Ou essa mente é o que sou, como sujeito? Mas que será? O que é essa mente que digo minha? Será algo? “Algo que pensa”? Algo que produz ideias? Ou será algo que processa sensações advindas dos sentidos? Esses sentidos que tornam meu corpo sensível. Vejo, toco, ouço, provo, experimento, sinto. E a mente processa. Como? Tal como é? Ou tal como pode processar? O que posso conhecer? Será a mente um aparelho de conhecer a realidade tal como é? Ou ela já vem com uns aplicativos instalados de fábrica que me fazem ver, ouvir, provar e experimentar o mundo de uma certa maneira minha? — ou nossa, talvez, humanos.
Mas onde, então? Onde está minha mente? No meu corpo? Espalhada pelo meu corpo em trilhões de conexões nervosas? No meu peito, que aperta com a perda e alivia com o prazer? Na minha cabeça, talvez, onde parece que ouço as vozes da consciência? Estará no meu cérebro?
Mas eu disse que ia falar de aula online. O que isso tem a ver com aula online? É que na aula online parece que falta, que falta alguma coisa. Mas o que será? Eu estou lá, estão lá os alunos. Eu e eles na rede. A grande rede mundial, a world wide web. www. Mas então porque na aula online me sinto tão preso à minha própria cabeça? Não deveria ser ao contrário? Na inter-net, essa rede incalculável de interconexões, porque me sinto um sujeito ainda mais clássico do que nas salas do século XIX, palestrando sobre conteúdos de século XX para alunos de século XXI, como costumam dizer?
Eu até gosto. Gosto da aula online. Somos todos muito acostumados a prestar atenção nas telas. As dispersões — que me parecem realmente menores — são no mínimo menos visíveis, menos perceptíveis. Me sinto visto e ouvido. Há perguntas, há respostas, trocas, provocações. Sim, é bom. Mas é que…
É que me falta — é bobeira, eu sei, vocês vão dizer — é que me falta o quadro… Mas o que tem o quadro a ver com as aulas? O quadro é só uma ferramenta onde sua mente anota suas ideias. O quadro é só um objeto. O sujeito é você! Você é o sujeito! E na aula online há tudo o que precisa haver. Você o sujeito, o conteúdo na sua mente, e os alunos, outros sujeitos-mentes-processadores. Que mais você quer? Quer anotar? Anote! Faça 1001 slides com 1001 possibilidades de design e entretenimento.
Sim, há o slide. Que não faço, nem uso, confesso. Mas que já fiz e já usei, é claro. E não faz o mesmo efeito, não, que o quadro. É que o slide é um script pré-programado pelo sujeito. O slide é um guia. Um guia um tanto autoritário que me diz o que devo dizer. Que me diz o que devo fazer. Que me diz para onde devo ir. Eu sei, ele se diz deslizante, escorregadio. Mas me parece muito mais fixo que um quadro. Eu sei: quem faz o slide sou eu, quem escreve no quadro sou eu. Qual a diferença então?
É que o slide é um quadro pré-preenchido que agora eu tenho que seguir e, quem sabe, explicar. Às vezes invento, inclusive, pois já não sei mais o que me levou a incluir exatamente aquele tópico que agora me parece nada ter a ver com mais nada que valha a pena dizer. Mas digo. “Estão vendo? Esse tópico assim e assim? Ele quer dizer isso e isso”. Mas é mentira. Eu já não sei mais.
E o quadro? O quadro está em branco. E agora talvez eu não precisasse dizer mais nada, porque talvez essa frase já tenha dito tudo. Mas eu digo. Digo mais. O quadro em branco é o vazio abissal pleno de possibilidades. A garganta aberta antes ainda de dizer palavra — aquilo que os gregos chamavam de caos, verdadeiro princípio de toda a criação. O quadro em branco me convida a explorar possibilidades, criar formas, conexões, abreviações, neologismos. O quadro em branco é a verdadeira tela mágica que me põe em conexão com o mundo. A tela que me conecta a uma verdadeira world wide web.
O quadro em branco é pura possibilidade. Mais generoso que a tela em branco, não exige nada. A tela em branco diante do artista é um tanto tirânica. Ela exige ser preenchida com uma obra de arte incrível. Se o resultado parcial não é satisfatório, ela resiste à mudança, registra as marcas do fracasso com ainda mais apego do que os traços de sucesso. Mancha. Escarnece. Tortura o artista com as marcas dos seus erros. Às vezes é melhor jogar fora. Tela perdida. Vamos pra próxima. O quadro não. O quadro não exige. Ele apenas está lá. Aberto. Disponível. Convidativo. Benevolente, esquece todo erro com um simples deslizar do apagador. Não guarda, não registra. Quase uma encarnação do ideal nietzschiano de pura afirmação, diz sim a tudo, bom ou ruim, feio ou bonito, não conhece o ressentimento.
O quadro em branco não me diz o que fazer. Não tem a pretensão do slide. Também não me diz o que não fazer. É um convite à experimentação. Ao fluxo. À conexão. Tudo-vale: geometria euclidiana e não-euclidiana, desenhos com traços infantis ou semi-profissionais [não no meu caso, que nunca aprendi a desenhar bem], números, cálculos, datas, títulos de livros, quadros, filmes, séries, nomes de diretores, artistas e personagens, autores seríssimos, piadas, versos, citações, rabiscos… Sim! Meus quadros são um caos! Uma rede! Um emaranhado de circunstâncias de todos os tipos… Nada “didáticos”, como se diz na pedagogia… Obras de arte sem pretensão suficiente para se verem como tal. Efêmeras, duram no máximo até o dia seguinte… quando outro professor, em outra aula, apaga tudo e tudo recomeça.
Nesse ponto você já entendeu que não uso o quadro para pré-escrever a fala. A plenitude de possibilidades vai simplesmente se inscrevendo no vazio do quadro, tomando a forma disforme de uma rede caótica e dinâmica, trazendo todo tipo de memória, texto, conhecimento, informação, sensação, experiência, arte, número, fórmula, devaneio, traço, rabisco… tudo vai se fazendo na hora, como um verdadeiro acontecimento! Capturado pelo movimento dessa rede, frequentemente me esqueço quem sou. Frequentemente já não sou “sujeito” de nada. Já não estou no controle. Já não sou “algo” que pensa ou que armazena conhecimentos que devem agora ser repassados. Sou movimento, fluxo, conexão, rede.
Onde está a mente, que já não ouso chamar de minha, se não nessa rede? Essa rede dinâmica de conexões complexas que me atravessam e me compõem? É isso que faz falta no corpo inerte diante da câmera — é a própria experiência da rede. Na aula online sou obrigado a corresponder à fantasia ocidental de ser-sujeito racional, consciente, indivisível e idêntico a si mesmo que traz conteúdos mentais dentro de si e que os comunica sabendo de que fala e porque fala o que fala — esse sujeito que sabe muito bem porque colocou cada tópico no slide que fez semana passada… esse sujeito imaterial livre de corpo, afeto e desejo…
Talvez você julgue meu texto como reacionário… como assim? Defender o antiquado diante do novo? Como assim? Defender claustros disciplinares ao invés da rede? Não defendo, caro leitor, nem ataco. Não hoje. Não aqui. Me entenda, me entenda… é só uma experiência que proponho, um exercício, talvez, de imaginação: talvez estar online não seja sinônimo de não-antiquado. Talvez estar online não baste para ser contemporâneo. (Então ainda não percebeu? O tanto de coisas antiquadas que se promovem hoje online?). E talvez estar entre paredes não signifique ser arcaico ou menos contemporâneo. Desde que haja janelas. Janelas de um tipo que Foucault esqueceu de mencionar. Janelas que não sejam de vigilância. Janelas-quadro-branco, que em seu vazio abissal, nos trazem o mundo e a mente, o mundo-mente, a mente-mundo, como rede dinâmica de múltiplas de variadíssimas circunstâncias.
Não quero dizer com isso que a solução para o futuro é a antiga sala. Mas insisto no seguinte: é preciso inventar “quadros-em-branco” para a aula online… precisamos do vazio, do abismo, do caos, que é de onde podem emergir as possibilidades e experimentações.