Skylab — o infinito, o abismo e o sem fim

“Cogito”
A primeira vez que ouvi falar em Rogério Skylab foi em 2003. Cursava então o segundo ano do Ensino Médio no Colégio Pedro II Tijuca e estava no auge da adolescência. A est’ética rock’n’roll definitivamente entranhada na minha carne, os lemas da juventude rock’n roll circulando em minhas veias embalavam o ritmo frenético da montanha russa existencial que me carregava aos solavancos pelos altos e baixos psíquicos, pelos inferninhos underground, pelas esquinas e pelos botecos. “Hoje tem show do Skylab no CEFET!”, alguém falou. “Quem é Skylab?”… “Um cara muito doido, com músicas muito doidas”, “ele deu uma entrevista no Jô Soares!”. Fui. Achei o show confuso, engraçado, interessante. Lembro muito bem de “Matador de passarinho”, “Fátima Bernardes experiência” e “Parafuso na cabeça”. Não entendi nada, mas me diverti. Desde então, para mim, Skylab era apenas isso: “um cara muito doido, com músicas muito doidas”.
15 anos depois, um professor universitário de Filosofia, melancólico crônico, voltava da última aula da semana. Aula noturna. Corpo e mente cansados, não só das aulas, mas dos 30 anos de existência… sentado no ônibus, ar condicionado forte, fones desproporcionalmente grandes nos ouvidos. Há obsessões que são crônicas. No meu caso: anjos, flores, palíndromos e outras coisas que não vale expor. E há também as obsessões agudas. À época eu estava obcecado por Torquato Neto. Desde que assisti aquela entrevista do Caetano Veloso no “Programa Livre” em que ele conta a história de “Cajuína” (se não viu, veja). Pois bem, cansado da minha playlist usual, resolvi procurar no Spotify (meu melhor amigo é um app… sinal dos tempos… ninguém conhece meu gosto musical tão bem, nem eu.) meu poema favorito de Torquato: “Cogito” (se não leu, pare tudo e leia!). Eis que encontro o meu querido “Cogito” num álbum maravilhosamente intitulado “Melancolia e Carnaval”, de Rogério Skylab.
Ouvi a canção-poema. Uma. Duas. Três vezes. Que maravilha. Que arranjo. Participação especial de Jards Macalé, grande parceiro de Torquato. A experiência toda foi um deleite. Engarrafamento. A volta para casa seria longa. Ótimo. Eu precisava ouvir esse álbum chamado “Melancolia e Carnaval” do princípio ao fim. Um álbum com esse título e que captou tão bem o espírito do Cogito de Torquato tem que ser ouvido do início ao fim. Naquela noite. Naquela exata noite, Skylab deixou de ser para mim “um cara muito doido com músicas muito doidas”. Skylab se tornou alguém a quem admiro como compositor, arranjador, artista.
“Uma rede de parabólicas pensantes conectadas à nuvem da existência”
Skylab não faz graça. Skylab é realmente o que o nome Skylab diz: um laboratório no céu, uma rede de parabólicas pensantes conectadas à “nuvem” da Existência. “Eu não faço humor. Minha obra não tem nada a ver com humor”, Skylab repete em cada uma de suas entrevistas. Sua preocupação, em tom de apelo, é aquela de Nietzsche na primeira estrofe de Ecce Homo: “Escutai-me! Pois, sou este assim. Sobretudo, não me confundam com outro!”. “Não me confundam com um humorista”, repete Skylab. O que está em jogo em sua obra é a experiência limítrofe da língua, a experimentação da língua na tentativa — na tentação — de sustentar-se o máximo possível naquele lugar que não é um lugar, naquele vértice ou vórtice em que pensamento, arte e vida se tocam, se fazem e se tornam, de alguma maneira, indiscerníveis. Pensamento, arte e vida, não humor. A tentativa e a tentação de sustentar-se o máximo possível diante do abismo, a tentativa e a tentação de sustentar-se o máximo possível na ambiguidade, no indecidível num terceiro não-lugar para além ou aquém disso e daquilo. Abismo. Ambiguidade. Não humor.
Está em jogo em Skylab o reconhecimento e a radicalização daquilo que o psicanalista MD Magno chamou de artificialismo total da vida. Tudo é artifício. Tudo é artificial. Tudo é arte. Enfrentando o desafio proposto por Nietzsche contra a tradição ocidental, Skylab explode a fronteira (artificial!) entre natureza e cultura.
É tudo artifício. Skylab se recusa a assumir uma “natureza”. Recusa em cada oportunidade o sonho romântico do “gênio”. Não é de um “espírito” naturalmente genial que se trata. Trata-se de um corpo que sua, que cansa, que dói, que aprende no labor repetitivo do seu ofício. É um trabalho de artífice, de operário, de com-posição obsessiva de palavras, ideias, gestos, gostos, notas, acordes, arranjos… “É estritamente racional. Meu trabalho não tem nada de intuitivo”. Com isso Skylab diz: Nada é natural. É tudo artificial. É preciso a todo custo recusar a ilusão de uma “natureza”, de um processo “naturalmente dado”. Tudo é construído. É o que se vê numa obra atravessada por ritmos, arranjos, palavras e vozes tão diferentes que vem de lugares tão diferentes e vão para lugares tão diferentes… é punk, é trash, é rock, é samba, é pop, é mpb… é pensamento, arte e vida. É articulação. Exercício de liberdade que se encontra de certa forma com o pensamento de Derrida: tudo é construído, logo, tudo é desconstrutível. Gesto extremamente ousado que por sua vez remonta a Nietzsche quando afirma: “tudo veio a ser. Não existem fatos eternos, assim como não existem verdades absolutas”.
Nietzsche, Derrida, Skylab e um gesto radicalmente anfi-fundamentalista. Os dogmas, os valores, as crenças que se querem vender como eternamente verdadeiras e absolutas denegam seu processo de fabricação e se impõem violentamente como intrinsecamente dotadas do poder de dizer quem somos, o que podemos ou não fazer, como devemos ou não pensar. Recusar a “natureza” é assumir a Existência como campo aberto de possibilidades de experimentação. Experimentar as dores e as delícias de estar-aí, existindo em meio a uma rede de circunstâncias mais ou menos imprevisíveis e mais ou menos incontroláveis que nos atravessam e nos constituem. “O que eu faço é experimentação. Experimentação de linguagem”. Trata-se de experimentação. E isso me levou a perceber o parentesco que a linguagem tem com a língua. Não “o português” ou “o inglês”, mas a língua. Essa massa de carne hipersensível cheia de papilas gustativas, ávida de experimentações.
É preciso explodir a linguagem tradicional… libertar a língua no que ela tem de curiosa, de sensível, de sensual. Linguagem é espírito. Língua é carne, é sangue, é gosto. A língua lambe. A lambida prova, provoca, aproveita, excita, goza e faz gozar. A língua não é binária. A língua não tem gênero. A língua não é ativa nem passiva — ela lambe ativamente todas as superfícies e nesse lamber recebe gostos e desgostos como impressões do outro. A língua é múltipla. Multicuriosa. E singular, de cada um. A multiplicidade das papilas gustativas que, na lambida, entrecruzam e entrefundem real e irreal, concreção e abstração, física e metafísica, realidade e fantasia. Não se lambe a realidade nem a fantasia puras. A lambida é o movimento que funda e funde realidade e fantasia no lamber. A língua lambe, prova e experimenta o Real na Fantasia, a Fantasia no Real. Sem referência. Quem lambe? Quem é lambido? Sem referência. É ridículo perguntar pelo sujeito da língua ou pela língua do sujeito. A língua lambe. E no lamber experimenta e prova e provando gosta ou desgosta, a-prova ou desa-prova, mas antes, antes de qualquer linguagem vem o lamber e com o lamber o experimentar e o provar…
E é isso que vejo na obra de Skylab. A experimentação. O aprendizado constante da própria língua. É preciso, em primeiro lugar, aprender a falar a própria língua. E isso é um processo interminável, se não há uma natureza. Na obra de Skylab, é o corpo que fala. Mais do que uma linguagem historicamente atrelada ao “espírito”, é uma língua. A sensualidade e a molecagem de uma língua que lambe o real e experimenta gostos e desgostos. Talvez por isso tantas referências ao corpo. A carne, o sangue, as vísceras, as pulsões, tudo aquilo que uma tradição platônica, cristã, cartesiana e iluminista fez questão de recalcar, colocando em primeiro plano as noções muito abstratas de “alma”, “espírito”, “mente” e, justamente por isso, colando sobre nossas cabeças tábuas morais pesadíssimas que acrescentam uma carga de tortura extra aos sofrimentos da Existência. Mas há um corpo que é preciso considerar. Um corpo que nos torna abertos ao real, vulneráveis às múltiplas circunstâncias incontroláveis e imprevisíveis que nos afetam e nos constituem.
Talvez, por isso, também por se tratar de uma linguagem muito mais ligada à língua do que ao espírito, Skylab negue veementemente ser um “crítico”, alguém que faz “críticas sociais” em suas músicas. “Não é crítica. Não é de um saber discursivo que se trata”, ele afirma. Ora, é impossível não sentir a crítica social — com diferentes tons — em “Casas da Banha” ou em “Tem Cigarro aí?”. No entanto, é uma crítica social que se sente. Não se trata de um discurso que um sujeito racional universal comunica a outro. Trata-se de uma experiência que uma língua singular comunica à outra, fazendo-a sentir sensações que atravessam e marcam todo o corpo.
O tema da decadência também é muito caro a Skylab. E essa est’ética da decadência me parece muito ligada a algo que me interessa muito ultimamente, que é pensar uma est’ética da negatividade como forma de resistência a essa nossa cultura maníaca por ideais de sucesso, felicidade e saúde — o que se vê nas onipresentes falas dos onipresentes “coaches”. Há uma dose de beleza incalculável na decadência. Há uma espécie de verdade na decadência que toda suposição de “sucesso” denega… Existir é um fracasso… Existir é fracassar… visto que não há completude, não há reencontro do Espírito Absoluto consigo mesmo, não há Fim da História, não há o gozo absoluto da pulsão que nos arrasta. Recentemente Skylab escreveu:
“Tem gente que em um disco liquida a parada, não precisa fazer mais nada. Todos os demais discos, que vier fazer depois, serão uma mera repetição do primeiro, quando não uma decadência. No meu caso, existe uma impotência em liquidar a parada. Por isso não paro. Atiro, erro e atiro de novo. Um Matador às avessas. E de fracasso em fracasso eu continuo. Tentando. Não conseguindo. Mas tentando. Chega a ter uma certa plasticidade. Mas sem nenhuma eficiência. Tentar é comigo mesmo. Eu já nem penso que vou conseguir, já foi esse tempo. Eu tento porque não sei fazer outra coisa. Tem vezes até que penso que deu certo. Mas no dia seguinte eu vejo que estava errado. Tem gente que precisa de espaço, eu preciso de tempo. Poderia estar encaixotado e, no entanto, continuaria meu método de tentativa e erro: eu quero prosseguir, não consigo prosseguir, impossível prosseguir, eu vou prosseguir”.
Diante disso, o gozo est’ético da decadência é uma espécie de cuspida na cara da denegação… uma cuspida na cara das ilusões de “sucesso” e das promessas de felicidade tão caras à nossa maníaca cultura. Talvez o que nos resta seja justamente essa busca incansável de fracassar à nossa própria maneira.
Por fim, mais um ponto que me aproxima de Skylab é esse gosto pelos lugares terceiros. Esses lugares que são como não-lugares. São mais como experiências de um terceiro indiscernível que se exprime “entre” isso ou aquilo. Aquém ou além do binário já constituído. Entre duas identidades já marcadas e bem delimitadas. Entre um eu e um outro, entre um corpo e um espírito, entre a crítica e a celebração, entre o sagrado e o profano, entre natureza e cultura, humano e mundo, real e fantástico… Esse gosto pelo “terceiro”, que Nietzsche enuncia numa formulação como “além de bem e de mal”, que Derrida chama de “indecidível”, que Magno chama de “neutro” ou “Revirão”… É o que se encontra, por exemplo, no título do álbum tanto me tocou: “Melancolia e Carnaval”. É uma espécie de imagem, de sensação tão confusa porém tão palpável de uma profunda e arrastada tristeza em meio à celebração acelerada do carnaval brasileiro. Ou podemos pensar em que medida não é melancólica em si mesma aquela hiper-excitação, aquele imperativo do gozo que pesa sobre cada um daqueles corpos hiper-acelerados no Carnaval… ou ainda o quanto de carnavalesco, o quanto de fantasia e de celebração existencial há na mais funda das melancolias… Nem uma coisa, nem outra, Skylab faz esse arriscado exercício de se de-morar nesse terceiro (não-)lugar. Esse “terceiro excluído” que a lógica e a metafísica tradicionais não podem pensar. Esse “terceiro instruído” da obra de Michel Serres: “verdadeiramente exilado. Privado de casa própria. Morto sem sepultura. Intermediário. Anjo. Mensageiro. Traço de união. Para sempre fora de toda a comunidade, mas um pouco e muito ligeiramente em todas. Arlequim, pois” (Serres, Terceiro instruído, p. 22).
“o infinito, o abismo e o sem fim”
Não poderia concluir sem confessar que não sou fã de todas as músicas e discos de Skylab. Nem sequer conheço todos os seus álbuns (são muitos!). Musicalmente, gosto muito da “Trilogia dos Carnavais” e dos dois primeiros álbuns da “Trilogia do Cu”. Mas, para mim, nada se compara ao recém-lançado “Nas portas do cu”. A princípio a coisa toda com o “cu” parece grotesca ou no mínimo sarcástica. Mas, mais uma vez, o que está em jogo aqui é uma experiência de pensamento, arte e vida. Como a língua, o cu não é binário, não tem gênero, não é essencialmente ativo nem passivo. O “cu” é mais uma metáfora para esse terceiro lugar impossível que Skylab explora incansavelmente ao longo de sua obra. O cu é mais uma tentativa de dizer o indizível, de experimentar o Real com a língua. Além de ser mesmo um conceito vastamente explorado nesses termos por correntes de pensamento ligadas a Deleuze e Guattari.
O álbum começa com a belíssima “Nas canções de amor”. No início um sinal de alerta com uma sanfona confusa e então vem a guitarra grave, lenta e pesada acompanhada de um dedilhado de violão com acordes menores que perfazem o tom melancólico da introdução. Os versos que abrem “Nas portas do cu” são de uma melancolia tão pura e tão verdadeira… a experiência de uma solidão existencial tão radical que faz lembrar o gélido alto da montanha de Nietzsche ou os últimos dias de Kurt Cobain trancado em sua mansão às voltas com os próprios fantasmas: “A solidão da multidão, a solidão dos corpos/ A solidão de quem não tem mais nada a ver com isso”. Haverá algo mais abissal do que a solidão “de quem não tem mais nada a ver com isso”? Não se trata de uma solidão romântica, desesperada, afetada… é a solidão de uma indiferença radical, de uma melancolia funda, de um cansaço existencial supremo. Uma solidão de século XXI, mas que ao mesmo tempo escapa de registros espaço-temporais.
No refrão, o reverb nos leva para uma outra dimensão, o teclado arrítmico e dissonante, a batida repentina e desajeitada de um DJ que girou o disco sem querer e por fim um coro de Skylabs de voz distorcida. O clima é sombrio. Quase macabro. Não fosse o “papapapapapa” que vem nos lembrar que é tudo artifício. Mesmo a melancolia. Mesmo a sombra. É tudo artifício. A sombra que já havia se apresentado no refrão agora chega a se fazer palavra no segundo verso: “É quando o céu está azul que aparece a sombra/ do que ainda não chegou e tá do outro lado”. A ambiguidade. O gozo est’ético do terceiro. O terceiro verso diz (enquanto um corvo grita ao fundo): “Naquele dia que um cachorro me olhou nos olhos. E um corvo na janela anunciou meu fim. E no entanto era um dia tão ensolarado. Tinha samba, tinha funk e até tamborim”. O olhar no olho cria um reconhecimento mútuo entre humano e cachorro, humano e animal. Onde passa a fronteira entre humano e “o animal que logo sou”? É um outro animal, aquele que, ao menos desde Poe estará para sempre ligado às sombras e à morte, o Corvo, que vem anunciar o fim. E, mais uma vez a ambiguidade, o revirão, o terceiro não-lugar: era um dia ensolarado com samba, funk e tamborim (sempre ligados a uma est’ética da alegria). No quarto verso, tomar vinho em boa companhia no jardim do Éden. O sagrado e o profano se entrecruzam e se tornam indiscerníveis. Um dia tão perfeito que não tinha sombras. Só havia o reflexo dos corpos. Aqui as sombras se vão por um instante, mas esse dia sem sombras inserido numa canção tão sombria que se chama “nas canções de amor” já se revela quase inteiramente como ilusão. A ilusão de um dia sem sombras que só as canções de amor podem produzir. A música se prolonga por mais 5 deliciosos e perturbadores minutos com um coro sombrio, trombones, sanfonas e teclados dissonantes. Em algum momento desses 5 minutos, o primeiro verso, que abre com chave de ouro o álbum, vem fechar com chave de ouro a música. Arranjo magnífico que conscientemente abre mão da “coesão” tradicional e capta a confusão da experiência contemporânea de mundo.
A segunda música começa com um singelo violão. “Sertão” expressa a experiência sempre excessiva de Ser. Ser-estar-aí, existindo. Ser tão… ser tantas coisas… “ser tudo / ser nada”… Na segunda metade da música, o baixo acrescenta peso, enquanto a voz sobe uma oitava e vai ao extremo agudo. “A voz do cu” começa animada como uma música que introduz um filme adolescente da sessão da tarde. “O sol já vai nascer. Acho que o mundo é bom”. Parece que depois de uma fossa existencial colossal, o eu-lírico enfim acordou se sentindo bem. “Só queria saber, menina, qual é a voz do cu”. O refrão repete: “Qual é a voz do cu?”. Parece brincadeira, mas, se levarmos a sério o componente existencial dessa questão, qual é a voz desse não-lugar, desse terceiro indefinível, inapreensível pela lógica tradicional? Qual é a voz desse abismo que escapa a qualquer classificação binária? Qual é a voz do impossível? No meio da música, violinos deliciosamente distorcidos vem quebrar nossa expectativa, nos despertando para uma outra experiência est’ética que desemboca no refrão.
A quarta música, “Nas portas do cu”, é sublime. Por si só, isso já cria uma tensão no ouvinte. Uma música sublime chamada “Nas portas do cu”. “Nada mais contemporâneo que a ambiguidade”, como sempre diz Skylab. Um clássico arranjo de violinos sustentando um belo dedilhado de violão embalado por acordes menores. “Todas as portas desapareceram e não tem mais como eu entrar”. O extremo da angústia kafkiana experimentado no avesso do que se vê no clipe “Daydream” do Radiohead. Lá, uma sucessão interminável de portas que só levam a outras portas e a outras portas, infinitamente, sem que realmente se chegue a lugar nenhum. Em “Nas portas do cu”, a total ausência de portas, “todas as portas desapareceram”, nos colocando na estranhíssima posição de não saber se estamos fora ou se estamos dentro. Ao mesmo tempo fora e dentro. Sem portas. Já lançados numa espécie de lugar-algum. Auge do estranhamento existencial. “Eu to por fora? Eu to por dentro?”. Não saber. Se estamos por fora ou por dentro. O belo arranjo de violinos me lembra os melhores trabalhos orquestrados do Oasis dos anos 90.
“Capa Negra” inicia com um riff bem rock’n’roll. A letra narra o inusitado encontro com uma “bosta”. O “papapa” tão típico da MPB clássica marca o contraste quase insuportável entre o estilo — tão clássico e refinado — e o tema, tão grotesco. “Olhei nos olhos daquela gosma”. Mais uma vez o “olho-no-olho” nos remete a um reconhecimento mútuo, de seres da mesma espécie. Afinal, não é tudo matéria? Não é tudo a mesma substância? É uma experiência espinosista, de afirmação de um monismo radical de base. Por que não olhar nos olhos da bosta? Experiência radical de quebra de narcisismo e de uma afirmatividade total: “tudo bendizer, da flor à merda, da merda à flor”, já disse Md Magno — mais um pensador de um monismo radical de base — em algum de seus seminários. Mas aí bate o nojo. Cai uma lágrima. “Será de tédio, de histeria ou neurose?”. Por que o nojo? Por que a denegação da comunhão de base entre eu e qualquer outra matéria existente? Será neurose ou histeria? No melhor dos casos, apenas tédio… No verso seguinte, a onivoracidade da língua não se contém, e experimenta a merda “como quem pede perdão aos deuses e paz na Terra”. Haverá i-mundície maior que pedir perdão aos deuses e paz na Terra? “Nada mais contemporâneo que a ambiguidade…”, mas nada mais antigo, também…
Faixa 6. Voltamos ao rock ballad. Violão sutil. Belas harmonias recheadas de acordes menores — como em todo o disco. Na letra, as intermináveis contradições do amor. “Porque o amor tem razões que ninguém vai descobrir”. “Sem freio” é a mais clássica MPB. Nos acordes, na batida. Ao menos até o final, quando o arranjo distorcido vem nos lembrar que a MPB também é artificial. O contraste fica por conta da letra que poderia ter um forte componente existencial — a experiência de andar sempre sem freio — mas que fica deslocada naquela atmosfera bem-comportada de uma MPB bem clássica. Uma letra que poderia ser impactante mas não é por causa de um deslocamento radical. Mas aí a canção ganha um novo componente existencial. Não mais pela letra, mas pela experiência do deslocamento, do não-pertencimento, do estranhamento total entre letra, arranjo e melodia.
Faixa 8. Trilogia do “Anjo Torto”: Drummond, Torquato, Skylab. Uma canção radicalmente existencialista. Mas sem afetação. Trata-se de uma melancolia funda, que se entranha na pele e passa a fazer parte da vida. Sem afetação. Apenas aquela espécie de tranquilidade de quem vive “tranquilamente todas as horas do fim”. A letra é pura poesia existencialista. A maldição de viver numa queda sem fim, as sucessivas perdas, o despedaçar-se, e, por fim, o encontro com o abismo numa experiência existencial quase mística, sublime:
Quando eu nasci, um anjo torto disse assim
Skylab, a tua queda não tem fim!
Foi só depois que eu descobri
Por trás de tudo que perdi
O infinito, o abismo e o sem-fim
Mesmo assim, despedaçado, eu vi
O infinito, o abismo e o sem-fim
Aqui, minha experiência é de precisar de uma pausa. Preciso me demorar na experiência existencial de “Anjo Torto” antes de passar para “Catatau”, que vem como um “corta-onda”, um “quebra-clima”. Pura experimentação da língua com a palavra “catatau”. A experiência quase psicanalítica do deslizamento potencialmente infinito do sentido de uma palavra. Passado o tempo certo, posso ver que o brilho de “Catatau” fica por conta da batida envolvente. O baixão rolando solto. “Tarde pra negar” é mais uma MPB muito clássica toda artificializada pelo artificialismo total de Skylab. Na letra, uma experiência psicanalítica de “Só-depois”. “Você não notou nem percebeu”. A coisa vai chegando devagar e “se aloja no porão do coração como se fosse um ladrão”. “Só depois que você vê”, mas aí é “tarde demais”. E não é sempre tarde demais? Vivemos imersos em ilusões narcísicas de controle absoluto, mas no fim das contas as coisas primeiro acontecem e só-depois é que nos damos conta. “Venham Saturno, Júpiter”. Zé Ramalho se encontra com os Beatles do Sgt Peppers e Magical Mystery para produzir esta maravilha mística. É uma experiência mística. Tudo que eu disser será menor.
“Eu vou botar silicone na bunda”: uma espécie de Dark MPB. Uma MPB extremamente sombria. Um primeiro verso — repetindo o título da música — que parece “divertido” logo a partir do segundo verso dá lugar a uma experiência tão radical de solidão quanto a que vimos nos primeiros versos do álbum. “Eu vou botar silicone na bunda / tá todo mundo morrendo de fome”, “eu to fodido mas to animadíssimo / as bombas caem sobre os edifícios”. Aqui, Skylab me perdoe, mas isso é uma crítica social afiadíssima. E uma crítica que parte de um lugar de nojo, de tédio, de cansaço existencial, mas também do lugar de uma liberdade inaudita. A liberdade e a solidão “de quem não tem mais nada a ver com isso”. O refrão dessa música-angústia que se arrasta por 7 opressivos minutos diz “na terra, no céu e no mar”, mas a coisa toda soa como o testemunho de uma solidão tão profunda que é um não-ter-mais-lugar: nem na terra, nem no céu, nem no mar. Os versos são preciosos. “Eu vou botar o meu bloco na rua. Eu vou dobrar lá na frente a esquina”. Pausa dramática. Acabou a música? Mas a próxima frase vem: “Eu vou seguir minha linha de fuga, a solidão que me acompanha é contínua, a narrativa que eles fazem não é minha”. Essas três estrofes dispensam comentários. Solidão abissal. Seguir a linha de fuga. A narrativa que eles fazem não é minha. Não caber numa identidade pré-fabricada, não se deixar capturar pelas narrativas do Teatro Social que vivem tentando dizer quem você é, o que você pode ou não fazer, como você deve ou não pensar. O árduo exercício de lutar pela Singularidade absoluta que cada um de nós é. Estrangeirismo radical… mesmo a Terra não serve de lar… “vista do alto a Terra é pequena”. Quanto mais a pátria… “meu coração não é verde e amarelo”. Mesmo a identidade “humana” é negada: “nas minha veias correm gasolina”. E a música segue se arrastando — e nos arrastando com ela — cada vez mais sombria e angustiante. Uma maravilha de Dark MPB.
Por fim, 13. “Você sabe que é pra sempre”. MPBlues. Sugestivo terminar um álbum com “você sabe que é pra sempre”… a atividade frenética da língua não acaba… o discurso não fecha… a falação não para… o eterno retorno da língua… que nunca realmente chega ao fim…