O que é Metafísica do Impossível?

Diogo Bogéa
15 min readFeb 4, 2019

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Muitas pessoas, ao ouvir o título do meu livro — “Metafísica da vontade, metafísica do impossível” — abrem um sorriso e se dizem espantadas pela dificuldade de compreensão destas palavras — “e esse é só o título! Imagine o resto do livro!”. A partir dessa reação quase unânime entre amigos, conhecidos e familiares, tive a ideia de escrever esse texto para tentar mostrar que, na verdade, as ideias que compõem a “metafísica do impossível” são muito simples e muito mais compreensíveis do que se possa imaginar à primeira vista…

Metafísica

Metafísica é toda investigação que se pergunta pela primeira e última razão de ser das coisas. Qual é o sentido da vida? Por que existimos? O que estamos fazendo aqui? De onde veio esse mundo? Por que esse mundo existe? São questões metafísicas… Se você acredita ou já acreditou em deuses, você entende muito bem o que é metafísica. Os deuses são uma resposta “metafísica” para questões “metafísicas”. Os deuses são a primeira e última razão de ser de tudo. Os deuses criaram o mundo. Os deuses nos criaram. E, em geral, eles o fizeram com um propósito, isto é, se você acredita em deuses, provavelmente você acredita que os deuses têm um propósito especial — uma finalidade, um sentido — para o mundo e para nossas vidas. Mas se você não acredita em deuses e religiões, se você acha que somos apenas um agregado de matéria como outro qualquer, que estamos aqui sem qualquer razão, que nossa vida não tem nenhum propósito maior, que quando morremos nossa existência se acaba, então você já enfrentou aquelas questões metafísicas que menciono no início do texto, mas você recusa qualquer resposta metafísica para essas questões!

Fundamento

Metafísica, portanto, como busca pelas primeiras e últimas razões das coisas, é, num vocabulário muito típico de seres exclusivamente terrestres — como os humanos — a busca por “fundamentos”. “Fundamento” remete justamente à arquitetura, à base sólida e estável sobre a qual se pode construir um edifício. Por isso dizemos que a primeira e última razão de ser do mundo e das nossas vidas é um “fundamento”. Mais uma vez, se você acredita em deuses, esses deuses são o “fundamento” do mundo para você. Se você não acredita em deuses, mas acredita que a vida tenha um sentido, um propósito a ser realizado (aqui ou em outro mundo e em outra vida), esse “sentido” no qual você acredita é, para você, o fundamento da existência. Se você não acredita nem que existem deuses nem qualquer razão maior para estarmos aqui, você nega que haja fundamentos para a existência. Quando ouvimos falar, portanto, em “crise dos fundamentos” na contemporaneidade, isso significa que, para muitas pessoas, já acreditamos em tantos “fundamentos” que se mostraram falsos ou pelo menos duvidosos — talvez porque a ciência tenha avançado, talvez devido ao contato com outras culturas que acreditam em outros fundamentos –, que hoje já não temos mais condições de acreditar que nenhum “fundamento” seja verdadeiro. O que nos obriga a construir nossos edifícios sobre terrenos pantanosos, instáveis e inseguros ou, quem sabe, com um pouco de criatividade, construir castelos no ar.

Metafísica da Vontade

Em 1819–200 anos atrás, portanto! (acabo de me dar conta) — um jovem alemão de 30 anos chamado Artur Schopenhauer publicou o livro “O mundo como vontade e representação”. Trata-se de um livro belíssimo no qual o jovem Schopenhauer enfrenta todas as grandes questões metafísicas que inquietam a humanidade. Em suas investigações metafísicas, ele chega a respostas muito diferentes de tudo que já se havia feito no ocidente — talvez por ele ser um ávido leitor de tradições orientais. Schopenhauer chega à perturbadora conclusão de que a razão primeira e última do mundo, da vida, da existência, é uma espécie de força, de energia que está em tudo e que move todos os seres. Schopenhauer chamou essa “energia” universal de vontade. É como se houvesse um “querer” que atravessa todas as coisas: pedras, plantas, animais, humanos e mesmo as coisas que chamamos de “inanimadas”. Afinal, mesmo aquilo que à primeira vista não se move, as caixinhas de som do meu computador, por exemplo, só estão assim paradas porque estão exercendo uma pressão sobre a escrivaninha, que está exercendo uma pressão sobre o chão, etc. — além do mais com os avanços científicos, sabemos que as caixinhas estão paradas, mas no nível molecular, as micropartículas que a compõem estão em movimento.

Pois bem, para Schopenhauer ha uma “vontade” que faz as plantas brotarem, disputarem nutrientes, crescerem em direção ao sol; há uma “vontade” que faz os animais correrem atrás de alimento, buscarem parceiros para copular, lutarem entre si por alimentos, parceiros, territórios… e, por fim, há uma “vontade” que nos faz estar o tempo todo perseguindo objetivos, querendo alguma coisa, buscando alguma satisfação. Estamos sempre desejando algo: queremos comer aquele prato do qual tanto gostamos, queremos novas conquistas amorosas e sexuais, queremos manter aqueles relacionamentos já conquistados e que julgamos nos fazer bem por alguma razão, queremos arranjar um trabalho ou conseguir uma promoção no que já temos, queremos algum dinheiro ou mais dinheiro, queremos, queremos, queremos…

Mas, o que há de tão inovador e perturbador na tese de Schopenhauer? É que para Schopenhauer, o fundamento do mundo, como vimos, é a vontade. A vontade é a razão primeira e última de tudo ser como é… Tudo acontece como acontece por causa de uma força ou energia universal chamada “vontade”. No entanto — aí está o plot twist: — Schopenhauer diz que essa vontade, ela mesma, não tem nenhum fundamento (é grundlos, na língua de Schopenhauer). E ela mesma, essa vontade, é um tipo de fundamento muito estranho! Afinal, Schopenhauer diz que a “vontade” é um movimento, uma busca constante por realização, uma inquietação insaciável. E ainda acrescenta que a vontade é “cega”, quer dizer, não tem um propósito maior para essa sua busca incessante por satisfação, não tem um conteúdo definido para essa busca, não tem pudores morais que regulem seu movimento, não tem “filhos preferidos” entre os seres existentes. A vontade é uma torrente que arrasta tudo consigo. Arrasta tudo para a Existência, mantém tudo o que existe existindo e, por fim, arrasta tudo o que um dia existiu para a morte. Veja: mas que belo “fundamento”! Como construir edifícios bem-estruturados sobre um movimento caótico e cego?!

Metafísica da vontade (de poder)

Mais ou menos 50 anos depois de 1819, um outro jovem alemão chamado Nietzsche caminhava pelas ruas geladas do inverno alemão, quando viu exposto numa livraria um exemplar de “O mundo como vontade e representação”. Folheou algumas páginas e foi amor à primeira vista. Nietzsche levou o livro para casa e por dois dias não comeu nem dormiu, apenas leu. Devorou aquela obra magnífica para alguém como ele que vivia às voltas com questões metafísicas.

Nietzsche radicalizou a visão de mundo de Schopenhauer, afirmando que a “vontade”, essa energia universal que anima todas as coisas não é exatamente “cega”, mas, o que em termos práticos dá quase na mesma: ela enxerga apenas uma coisa à sua frente: poder. Nietzsche afirmou, então, que essa força universal que atravessa todas as coisas é uma vontade de poder. Em suas lutas por nutrientes, em suas disputas para crescer e se expôr à luz solar, as plantas lutam por poder. Em suas ferozes batalhas em busca de comida, território e parceiros sexuais, os animais estão lutando por poder. Nos mais diversos objetivos dos seus desejos e quereres os humanos estão lutando por poder! Essa é a crua tese de Nietzsche. Assim, aquele prato saboroso, aquela conquista amorosa ou sexual, aquele emprego ou aquela promoção, aquela quantia a mais em dinheiro, são todos apenas símbolos que representam para nós, de alguma maneira, um ganho em poder.

Insaciável

Schopenhauer e Nietzsche concordam em alguns pontos. Um deles é certamente o seguinte: tanto a “vontade” como a “vontade de poder” são absolutamente insaciáveis. A “vontade”, por ser “cega” e “sem razão”, “sem fundamento”, nunca vai encontrar uma satisfação final que realize de uma vez por todas o seu propósito — porque ela não tem nenhum propósito para além de continuar “querendo”, “desejando”, indo em direção a satisfações parciais e transitórias… Por isso Schopenhauer dizia que a vida humana oscila como um pêndulo… da frustração para o tédio… Pois, como somos seres que “no fundo” (de acordo com nosso “fundamento”) não somos nada além de “vontade”, nossa vida oscila entre desejos que não conseguimos realizar, o que nos deixa muito frustrados, e os desejos que efetivamente conseguimos realizar, mas que, como não saciam de uma vez por todas a vontade, não tardam a se mostrar insuficientes — e a busca continua!

A “vontade de poder” é, como diz Nietzsche, uma “vontade de mais-poder”. E, como podemos notar, “mais-poder” é um objetivo infinito! Afinal, por mais que conquistemos “mais poder” do que temos hoje, sempre poderemos conquistar “mais poder” do que teremos amanhã! Se consegui uma conquista amorosa ou sexual, amanhã quero partir para mais conquistas, ou então quero fazer tudo o que estiver ao meu alcance para manter essa relação conquistada. Se vem o emprego desejado, queremos uma promoção, se vem a promoção queremos a chefia — ou, ainda que não queiramos a chefia, queremos ao menos lutar para manter a posição conquistada (o que já exige que conquistemos “mais poder”). Daí o tal “eterno retorno” da “vontade de poder”. A vontade de poder, como “vontade de mais-poder” nunca encontra uma satisfação última e definitiva.

Às vezes olhamos para algumas pessoas e julgamos que elas já detém todo o poder que alguém possa desejar… mas é que o “poder” do qual Nietzsche está falando, não é apenas “poder político”, “poder econômico”, “poder militar” ou um poder da “força física”. Tudo, para Nietzsche, é sentido por nós como algo que aumenta ou diminui nosso poder — e estamos sempre impulsionados por essa vontade irrefreável de “mais poder”. Então, um chefe de Estado pode ter muito poder político — se é que tem mesmo! Se é que não é um fantoche de interesses diversos — mas pode ser acometido por uma doença que lhe reduza drasticamente o poder… está exposto a perdas em diversos outros âmbitos da vida… por isso muitas vezes não entendemos quando pessoas que julgamos muito ricas, bonitas e famosas apresentam graves quadros de depressão… não é nenhum mistério, se considerarmos que todos estão expostos aos sofrimentos de uma vida atravessada por uma força desejante insaciável…

Schopenhauer e Nietzsche, com essa visão de mundo que ficou conhecida — por razões agora óbvias — como “metafísica da vontade”, nos fazem ver o mundo e nossas próprias vidas como um movimento desejante insaciável — que cria, mantém e destrói, que junta e separa, que não tem em si mesmo um compromisso com nenhuma moral. Isso não quer dizer que vamos sair passando por cima de todo mundo o tempo todo — embora aconteça com alguma frequência. Podemos muito bem tentar respeitar as pessoas que nos cercam e agir de uma maneira que consideremos moral. Schopenhauer e Nietzsche entendem isso muito bem. O que eles diriam é: mesmo quando agimos de uma maneira que consideramos “moral”, não é por razões morais que o fazemos! Agimos de acordo com valores morais estabelecidos na nossa época porque nos parece que assim encontraremos algum tipo de satisfação para a vontade que nos inquieta, ou, como diria Nietzsche, porque julgamos que isso trará algum ganho de poder para nós — seremos bem vistos em nossa comunidade? Ganharemos recompensas nessa ou em outra vida? Evitaremos os desconfortos e as possíveis punições que recairiam sobre nós caso desrespeitássemos deliberadamente os valores morais instituídos?… é um caso a pensar…

Querer o que não há, querer o impossível

Talvez ninguém tenha explorado de maneira tão profunda e abrangente as implicações de uma tão inovadora e perturbadora visão de mundo como a psicanálise. O psicanalista brasileiro MD Magno reafirma que o “fundamento” da Existência é um desejo insaciável, uma pulsão, que segundo ele é algo como uma única “Pulsão de Morte”, algo como “Haver desejo de não-Haver”. O que a psicanálise — e especialmente Md Magno — arriscou explorar, é a íntima relação que há entre “desejo”, “gozo” e “morte”. Não é difícil de entender, embora possa ser difícil de aceitar:

1. O fundamento do mundo é uma força desejante — chame-se ela “vontade”, “vontade de poder” ou “pulsão”.

2. Todo desejo é uma busca por satisfação, por gozo. Todo querer é um querer realização.

3. Para um movimento desejante, a saciedade é o mesmo que gozo, mas a saciedade e o gozo também são o mesmo que a morte. Afinal, quando um desejo se realiza ele se extingue enquanto desejo e se converte completamente em gozo. (É uma experiência cotidiana muito comum: quando queremos muito alguma coisa e conseguimos efetivamente desfrutar daquela coisa, o desejo “morre”… desaparece e dá lugar à saciedade, ao menos temporariamente.)

Mas, no caso da pulsão que anima todas as coisas, no caso dessa pulsão que co-move todos os seres existentes, essa saciedade buscada simplesmente não existe, não há… O que há, portanto, com a existência, é um desejo de não haver, o desejo de um gozo absoluto, de um poder absoluto de realização… um gozo e um poder que são absolutamente impossíveis! Um gozo e um poder que não existem nem podem existir! É nesse sentido que podemos dizer que há uma “pulsão de morte” — porque o desejo existencial quer se satisfazer, mas para um desejo satisfação é igual a “morte”. E é nesse sentido que podemos dizer que a pulsão que co-move a Existência como um todo é um desejo de Impossível. A pulsão existencial — como a “vontade” de Schopenhauer e a “vontade de poder” de Nietzsche — quer o Impossível! Quer o gozo absoluto, o poder absoluto de realização… mas eles nunca vêm, porque são impossíveis… A menos que imaginemos que um dia a Existência possa dar lugar à não-Existência… mas o que é mesmo a não-Existência? (Não será a “absoluta não-Existência” completamente impensável, indizível e não-factível?)

Fantasia

Mas como é possível querer o que não há? Eu quero um chocolate porque sei que ele existe. Eu quero uma promoção no emprego porque sei que ela é possível. Eu quero uma conquista amorosa ou sexual porque sei que pode até dar errado, mas pode de alguma forma acontecer… É possível desejar o impossível? É aí que entra uma outra experiência que está intrinsecamente atrelada ao desejo: a fantasia. Se o que eu quero é sempre algo que não tenho ainda, desejar tem sempre algo de fantasiar. (Mesmo que eu já tenha um emprego e meu desejo seja simplesmente mantê-lo, o que eu desejo — a estabilidade e uma maior duração naquele mesmo emprego — é algo que não tenho ainda. Mesmo que eu já tenha um relacionamento e meu desejo seja fazê-lo durar, essa duração a mais que procuro é algo que não tenho ainda). O desejo vem sempre acompanhado da fantasia de sua realização — de uma maneira tão intrínseca que é difícil, talvez impossível dizer se quem veio primeiro foi “o ovo ou a galinha”: é o desejo que gera uma fantasia de realização ou é uma fantasia de realização que gera um desejo? Talvez sejam mesmo indissociáveis…

Ora, se o estranho “fundamento” do mundo é uma força desejante, ela vem também indissociavelmente atrelada a uma projeção fantasista! De modo que a fantasia não cessa de projetar como possível a realização impossível que a pulsão existencial deseja. Mais uma vez, é uma experiência muito cotidiana: sempre achamos que “aquela” satisfação será completa, absoluta, definitiva! “Se eu conquistar o emprego, serei feliz. Se eu conseguir a promoção, serei feliz. Se eu conseguir conquistar aquela exata pessoa, serei feliz. Se ao menos eu conseguir isso ou aquilo, aí então serei feliz”. Mas a cada conquista, outros desejos e outras fantasias aparecem e nos puxam com eles. A cada conquista, pelo menos depois de algum tempo, fica parecendo que faltou alguma coisa para a satisfação ser absoluta e definitiva… “se ao menos não tivesse acontecido isso ou aquilo, a satisfação teria sido perfeita”… mas a satisfação, por melhor que seja, nunca é absoluta e definitiva, não é mesmo?

Com isso podemos compreender que a pulsão que move a Existência está sempre animada pela fantasia da realização absoluta. Vivemos encantados por fantasias de gozo absoluto, poder absoluto, satisfação absoluta. Como o desejo é intrinsecamente fantasista, como a pulsão é intrinsecamente alucinatória, podemos desejar o impossível — e não apenas podemos… como parece ser só o que desejamos todo o tempo.

Metafísica do impossível

Se você teve paciência de me acompanhar até aqui, já pode imaginar o que seja “metafísica do impossível” — e porque ela é uma consequência da “metafísica da vontade”. Levando a sério a “metafísica da vontade”, essa visão de mundo segundo a qual o “fundamento” da existência é um movimento desejante, me deparei com o Impossível. Se o Impossível é tudo que queremos, o Impossível é a própria Causa da Existência — “causa” tanto no sentido daquilo que é um “objetivo máximo” (como dizemos no caso do militante que defende uma “causa”), tanto no sentido de causalidade mesmo… o Impossível Causa o movimento desejante da Existência. Assim, o Impossível é a razão primeira e última de ser de todas as coisas, a razão primeira e última da Existência. O Impossível é o verdadeiro “fundamento” do mundo e da vida! Por isso eu digo: “Metafísica do Impossível”

Mas, então, minha resposta para as grandes questões metafísicas é uma resposta “metafísica” ou “não-metafísica”? Defendo afinal que há um “fundamento”, uma “razão última”, um “propósito” para a Existência, ou que não há nenhum fundamento, nenhuma razão última, nenhum propósito para a Existência? A “metafísica do Impossível” é tão radicalmente metafísica quanto não-metafísica. Porque, no fim das contas, defendo que sim, há um “fundamento”, sim, há uma “razão”, sim, há um “propósito” e eles são o próprio Impossível! Isso quer também dizer por outro lado — e pelo mesmo lado —: É absolutamente Impossível que haja qualquer fundamento, razão ou propósito para a Existência! Tudo que se coloque nesse lugar — deuses, sentidos, propósitos morais — são sempre necessariamente fantasias que se projetam no lugar do Impossível.

E a coisa não se resolve nem para um lado e nem para o outro. Por isso se trata de um pensamento tensionado, vivo, em conflito consigo mesmo. Um pensamento “terceiro”, que nem a “metafísica tradicional” nem a “anti-metafísica” conseguem compreender. Por mais que o “fundamento”, a “razão” primeira e última de todas as coisas sejam impossíveis, arrastados pelo furor da torrente pulsional, não podemos deixar de desejar (e de fantasiar) o Impossível!

O que se pensa com esse pensamento?

O Desejo e o Impossível não se deixam capturar pela lógica tradicional. O Desejo e o Impossível não são binários, não são definíveis, não são “isso” ou “aquilo”. Nem mesmo são “meus”… eles me arrastam com eles e me fazem ser o que vou sendo a cada momento. O Desejo e o Impossível explodem aquela classificação tradicional de humano como “sujeito racional e consciente”. O que tem mais a ver com nossa experiência de vida? Tomar decisões como sujeitos racionais e conscientes, pesando e medindo todas as variáveis e então seguindo conscientemente para o caminho mais sensato? Ou nos vermos “possuídos”, “tomados” por desejos e fantasias que vão se movendo — e nos movendo com eles — de acordo com as circunstâncias que compõem cada conjuntura? Quantas das cenas que imaginamos, quantas das nossas atitudes e reações parecem ser conscientemente guiadas por uma razão soberana? Quantas parecem exprimir uma espécie de força mais básica que certamente seria considerada “ilógica” e “irracional” de acordo com os parâmetros tradicionais?

As diversas instituições do “Teatro Social” — as religiões, as ideologias políticas, a família, os “códigos de conduta” da moral socialmente aceita — não cessam de tentar nos enquadrar em “identidades” pré-fabricadas, não cessam de tentar dizer quem somos, o que podemos ou não fazer, como devemos ou não pensar. A Metafísica do Impossível afirma com veemência que todas essas tentativas de “definição”, “classificação” e “fundamentação” não podem cumprir o que prometem: isto é, não podem nos garantir estabilidade, segurança, paz, felicidade, poder ou satisfação absolutas — apenas relativas, isso sim! Ficando ao cargo de cada um transitar singularmente entre possibilidades relativas.

Se nenhum fundamento é verdadeiramente verdadeiro, se nenhum fundamento é absolutamente estável e seguro, o mundo se torna um campo aberto de possibilidades. Mas, não nos enganemos quanto a isso… vivemos imersos em ilusões narcísicas de controle absoluto, julgando que como sujeitos racionais podemos dirigir conscientemente todos os aspectos de nossas vidas… Assumir o Desejo — e com ele o Impossível — como fundamento da Existência, é compreender-se, enfim, como ser encarnado, aberto a muitos encontros com muitos “outros” que nos afetam e nos marcam. Assumir o Desejo — e com ele o Impossível — como fundamento da Existência é assumir a incontornabilidade da nossa vulnerabilidade. Somos vulneráveis ao próprio movimento desejante… às dores e prazeres que ele acarreta… somos vulneráveis às circunstâncias que nos atravessam e nos constituem… somos vulneráveis… não temos o poder absoluto, e lá onde vivemos querendo projetar o poder absoluto… lá onde gostaríamos que houvesse alguma instância supostamente capaz de nos garantir satisfação ou proteção absolutas (deuses, líderes religiosos, líderes políticos ou quaisquer outras pessoas ou instituições)… enfim, lá onde vivemos projetando fantasias de poder absoluto, resta apenas o Impossível…

Talvez muitos fiquem com a incômoda sensação de que um tal pensamento é “muito negativo” e que não teria outra serventia se não nos conduzir a uma incurável “melancolia”… A esses eu diria que a melancolia bem pode ser uma forma de resistência numa sociedade maníaca por ideais — fantasiosos e denegatórios — de sucesso, felicidade e saúde. Curiosamente, nessa mesma sociedade que tão insistentemente propaga a “positividade”, a droga mais vendida é o antidepressivo. Além do mais, não haverá um toque de “positividade” na compreensão de que o desejo — e com ele o impossível — que são como o fundo sem fundo do nosso ser, sempre excedem qualquer tentativa de definição e delimitação que os scripts pré-fabricados do teatro social tentam nos impôr?

Negando o poder absoluto de todos os fundamentos, de todas as razões de ser e de todas as identidades pré-fabricadas, a metafísica do impossível convida cada um de nós a lidar com o fato de sermos, cada um de nós, absolutamente singulares. Nunca, jamais, em qualquer outro tempo ou lugar uma tal combinação de circunstâncias tão diversas irá se repetir para gerar essa existência que cada um de nós encarna no seu aqui-agora. Cada um de nós é único e irrepetível. Que cada um possa expressar singularmente, artisticamente, artificiosamente, as dores e as delícias de ser o que é.

E se ainda assim tudo isso parecer ao leitor um grande disparate e a execrável obra de um espírito atormentado, tome como infalível consolo que: ninguém é obrigado a ler o que escrevo e muito menos a concordar comigo. Ninguém será perseguido caso não conheça ou não aprove a “metafísica do impossível”. Ninguém será impedido de assumir cargos ou frequentar espaços por ignorar ou reprovar a “metafísica do impossível”. Ninguém será preso, censurado, exilado ou queimado em praça pública por “renegar” a metafísica do impossível. Já o mesmo não podemos dizer em relação a outros “mitos” amplamente aceitos em nossa sociedade…

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Diogo Bogéa

Professor de Filosofia na UERJ. Doutor e Mestre em Filosofia.