Entrevista com Lacan: a psicanálise como sintoma revelador do mal-estar na civilização [tradução]

Diogo Bogéa
14 min readAug 13, 2019

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A entrevista que publicamos a seguir foi concedida por Lacan à Revista Italiana Panorama no ano de 1974. A mesma adquire valor tanto pelo conteúdo quanto pela forma, clara e acessível, de suas respostas. A vigência e o porvir da Psicanálise como discurso e prática em relação ao progresso da ciência, o real, a angústia, são alguns dos temas que este texto aborda. Para além ou para aquém da “fadiga de viver” como sintoma de época está a singularidade de cada um em sua relação com a palavra.

Amanda Nicosia, edição

Panorama: Prof. Lacan, ouve-se falar cada vez mais sobre a crise da psicanálise: dizem que Sigmund Freud está superado, que a sociedade moderna descobriu que sua doutrina não é suficiente para compreender o homem nem para interpretar a fundo sua relação com o ambiente, com o mundo…

Lacan: Isso é história. Em primeiro lugar: a crise não existe. Não há. A psicanálise, pelo contrário, não chegou ainda aos seus limites. Há ainda muitas coisas a descobrir tanto na prática quanto na teoria. Na psicanálise não há solução imediata. Apenas a longa e paciente investigação dos porquês. Em segundo lugar: Freud. Como se pode julgá-lo superado se nem sequer o compreendemos inteiramente? O que sabemos é que abriu a possibilidade de conhecermos coisas totalmente novas que não se haviam imaginado antes dele, problemas… do inconsciente à importância da sexualidade, do acesso ao simbólico à sujeição às leis da linguagem.

Sua doutrina pôs a verdade em questão, um assunto que concerne a cada um pessoalmente. Nada a ver com uma crise. Repito: estamos longe dos objetivos de Freud. É porque seu nome serviu para cobrir muitas coisas que tem havido desvios. Os epígonos nem sempre seguiram fielmente o modelo. Isso criou a confusão.

Depois de sua morte em 1939, alguns de seus alunos pretenderam fazer psicanálise de outra maneira, reduzindo seu ensino a algumas pequenas fórmulas banais: a técnica como rito, a prática reduzida ao tratamento do comportamento e, como objetivo, a readaptação do indivíduo ao seu entorno social. Isto é, a negação de Freud, uma psicanálise acomodativa, de salão.

Ele mesmo havia previsto isso. Dizia que há três posições impossíveis de sustentar, três tarefas impossíveis: governar, educar e psicanalisar. Hoje em dia pouco importa quem tem as responsabilidades de governar e todo mundo se pretende educador. Quanto aos psicanalistas, ai! Por desgraça prosperam como os magos e os curandeiros. Propor ajudar as pessoas significa o êxito assegurado e a clientela fazendo fila atrás da porta. A psicanálise é outra coisa.

Panorama: O que exatamente?

Lacan: A defino como um sintoma, revelador do mal-estar da civilização na qual vivemos. Não é certamente uma filosofia, eu abomino a filosofia, já faz tempo que ela não diz nada interessante. Não é também uma fé e também não vá chamá-la de ciência. Digamos que é uma prática que se ocupa daquilo que não anda. Terrivelmente difícil, já que pretende introduzir na vida cotidiana o impossível e o imaginário. Até agora, obteve certos resultados, mas não dispõe ainda de regras e se presta a todo tipo de equívocos. Não se pode esquecer que se trata de algo totalmente novo, seja em relação à medicina, à psicologia ou às ciências afins. Ainda assim é muito jovem. Freud morreu há apenas 35 anos. Seu primeiro livro, “A interpretação dos sonhos” foi publicado em 1900 e com muito pouco êxito. Creio que foram vendidos uns 300 exemplares naqueles anos. Tinha poucos alunos que passavam por loucos e eles próprios não estavam de acordo quanto à maneira de pôr em prática e interpretar aquilo que haviam adquirido.

Panorama: O que é que não anda no homem hoje em dia?

Lacan: Há uma grande fadiga de viver como resultado da corrida rumo ao progresso. Espera-se da psicanálise que descubra até onde se pode chegar arrastando essa fadiga, esse mal-estar da vida.

Panorama: O que é que leva as pessoas para a análise?

Lacan: O medo. Quando chegam ao homem as coisas, inclusive as coisas que queria, que não compreende, tem medo. Sofre de não compreender e aos poucos entra num estado de pânico. É a neurose. Na neurose histérica o corpo se torna enfermo do medo de estar enfermo sem realmente estar. Na neurose obsessiva o medo põe coisas bizarras na cabeça… pensamentos que não se pode controlar, fobias nas quais formas e objetos adquirem significações diversas e espantosas.

Panorama: Por exemplo?

Lacan: O neurótico chega a se sentir constrangido por uma necessidade espantosa de verificar dezenas de vezes se a torneira está fechada de verdade ou se tal coisa está no seu exato lugar, sabendo com certeza que a torneira está como deve estar e que a coisa está em seu lugar. Não há pílula que cure isso. Você deve descobrir por que isso acontece com você e saber o que isso significa.

Panorama: E o tratamento?

Lacan: O neurótico é um enfermo que se trata com a palavra, sobretudo com a dele próprio. Deve falar, contar, explicar ele mesmo. Freud o define assim: “assunção da parte do sujeito de sua própria história, na medida em que ela está constituída pela palavra dirigida ao outro”. O psicanalista não tem escolha: tem de ser o rei da palavra. Freud explicava que o inconsciente não é tão profundo, mas é inacessível ao aprofundamento consciente. E dizia também que nesse inconsciente “isso fala”: um sujeito no sujeito transcendendo o sujeito. A palavra é a grande força da psicanálise.

Panorama: Palavra de quem? Do enfermo ou do analista?

Lacan: Na psicanálise, os termos “enfermo, médico, remédio” não são exatos, não são utilizados. Mesmo as fórmulas passivas que são utilizadas habitualmente não são justas. Diz-se “ser analisado”. É falso. Aquele que faz o trabalho na análise é aquele que fala, o sujeito analisando, mesmo que ele o faça segundo o modelo sugerido pelo analista que lhe indica como proceder e o ajuda com intervenções. As interpretações que lhe são proporcionadas parecem dar sentido, numa primeira abordagem, àquilo que diz. Na realidade a interpretação é mais sutil, tende a borrar o sentido das coisas pelas quais o sujeito sofre. O objetivo é mostrar para ele, através de seu próprio relato, que seu sintoma, digamos, a enfermidade, não está em relação com nada, que está despida de todo sentido. Mesmo que em aparência seja real, ele não existe. As vias pelas quais esta ação da palavra procede pedem muita prática e uma paciência infinita. A paciência e a ponderação são os instrumentos da psicanálise. A técnica consiste em saber ponderar a ajuda que se dá ao analisando; é por isso que a psicanálise é difícil.

Panorama: Quando se fala de Jacques Lacan, se associa inevitavelmente esse nome a uma fórmula: “o retorno a Freud”. O que significa isso?

Lacan: Exatamente isso que é dito. A psicanálise é Freud. Se quiser fazer psicanálise, é preciso referir-se a Freud, em seus termos, em suas definições, lidas e interpretadas em seu sentido literal. Fundei em Paris uma escola freudiana justamente para isso. Faz 20 anos ou mais que venho explicando meu ponto de vista: o retorno a Freud simplesmente significa limpar o campo dos desvios e dos equívocos, das fenomenologias existenciais, por exemplo, tanto como do formulismo institucional das sociedades analíticas, retomando a leitura do seu ensino segundo os princípios definidos e catalogados em seu trabalho. Reler Freud quer dizer somente reler Freud. Aquele que não faz isso em psicanálise utiliza formas abusivas.

Panorama: Mas Freud é difícil. E Lacan, dizem, o torna incompreensível. Reprova-se Lacan por falar e, sobretudo, escrever de tal maneira que somente os iniciados podem esperar compreender.

Lacan: Eu sei, tenho a reputação de ser um obscuro que esconde seu pensamento em nuvens de fumaça. Me pergunto o porquê. A propósito da análise, defendo conjuntamente com Freud que seja “o jogo intersubjetivo através do qual a verdade entre no real”. Não está claro? Mas a psicanálise não é uma coisa simples. Meus livros têm reputação de incompreensíveis. Mas por quem? Não os escrevi para todos, para que sejam compreendidos por todos. Pelo contrário, não me preocupei nem por um instante de agradar a alguns leitores. Tenho coisas para dizer e as digo. É suficiente para mim ter um público que lê e, se não compreende, paciência. Quanto ao número de leitores, tenho mais sorte que Freud. Meus livros são muito lidos; estou assombrado por isso. Estou convencido de que dentro de 10 anos, no máximo, quem me ler me achará transparente como uma boa jarra de cerveja. É possível que então se diga: esse Lacan é banal!

Panorama: Quais são as características do lacanismo?

Lacan: É um pouco apressado dizê-lo, já que o lacanismo não existe ainda. Percebe-se apenas um odor, como um pressentimento. Seja o que for, Lacan é um senhor que pratica a psicanálise há 40 anos e que estuda há mais tempo ainda. Creio no estruturalismo e na ciência da linguagem. Escrevi em um dos meus livros que “aquilo a que nos remete a descoberta de Freud é a importância da ordem na qual adentramos, na qual somos, se se pode dizer, nascidos pela segunda vez, saindo do estado chamado justamente infans, sem palavra”. A ordem simbólica sobre a qual Freud fundou sua descoberta está constituída pela linguagem, como momento do discurso concreto universal. É esse mundo das palavras que criou o mundo das coisas, inicialmente confusas no devir do todo. Somente as palavras dão um sentido cabal à essência das coisas. Sem as palavras, nada existiria. Qual seria o prazer sem o intermédio da palavra? Minha ideia é que Freud, ao enunciar em suas primeiras obras (“A interpretação dos sonhos”, “Além do princípio do prazer”, “Totem e Tabu”) as leis do inconsciente, formulou, como um precursor, as teorias com as quais alguns anos mais tarde Ferdinand de Saussure inaugurou o caminho da linguística moderna.

Panorama: E o pensamento puro?

Lacan: Submetido, como todo o resto, às leis da linguagem. Somente as palavras podem introduzi-lo e lhe conferir consistência. Sem a linguagem a humanidade não daria um passo à frente nas investigações acerca do pensamento. Do mesmo modo para a psicanálise. Seja qual for a função que queiramos atribuir a ela — agente de cura, de formação ou de sondagem — não há mais que um medium do qual se serve: a palavra do paciente. E cada palavra pede resposta.

Panorama: A análise como diálogo? Tem gente que interpreta especialmente como um substituto laico da confissão…

Lacan: Mas que confissão? Ao psicanalista não se confessa nada. Vai-se dizer a ele simplesmente tudo o que se passa pela cabeça. Palavras, precisamente. A descoberta da psicanálise é a do homem como animal falante. O ofício do analista é colocar em série as palavras que escuta e dar um sentido a elas, uma significação. Para realizar uma boa análise é necessário um acordo, uma afinidade entre o analisando e o analista. Através das palavras de um, o outro busca formar para si uma ideia do que se trata e encontrar para além do sintoma aparente o difícil nó da verdade. Outra função do analista é a de explicar o sentido das palavras para fazer o paciente compreender o que pode esperar da análise.

Panorama: Então é uma relação de uma extrema confiança.

Lacan: Principalmente um intercâmbio, no qual o importante é que um fala e o outro escuta. Em silêncio mesmo. O analista não faz perguntas e não tem ideias. Dá somente as respostas necessárias às perguntas que suscitam sua vontade. Mas no fim das contas, o analisando sempre vai para onde o analista o leva.

Panorama: Isso é a cura. E quanto às possibilidades de cura? É possível sair da neurose?

Lacan: A psicanálise tem êxito quando esvazia o campo tanto do sintoma como do real, e assim chega à verdade.

Panorama: Poderia me explicar esse conceito de uma maneira menos lacaniana?

Lacan: Eu chamo de sintoma tudo aquilo que vem do real. E o real é tudo aquilo que não anda, que não funciona, isso que se constitui como obstáculo à vida do homem e à afirmação de sua personalidade. O real volta sempre ao mesmo lugar. O encontramos sempre ali com as mesmas manifestações. Os cientistas dispõem de uma bela fórmula: não há nada de impossível no real. É preciso muita cara de pau para fazer afirmações desse gênero, ou como bem suspeito, uma ignorância total acerca do que se faz e do que se diz. O real e o impossível são antitéticos; não podem estar juntos. A análise empurra o sujeito em direção ao impossível, sugere que considere o mundo como é verdadeiramente, isto é, imaginário e sem nenhum sentido. Enquanto que o real, como um pássaro voraz, não faz outra coisa senão nutrir-se de coisas sensatas, de ações que têm um sentido. Ouve-se sempre repetir que é preciso dar um sentido a isso ou aquilo, a seus próprios pensamentos, a suas próprias aspirações, aos desejos, ao sexo, à vida. Mas da vida não sabemos nada de nada, como os cientistas se sufocam para explicar. Meu medo é que por culpa deles, o real, coisa monstruosa que não existe, acabe tomando a dianteira. A ciência está substituindo a religião, com outro tanto de despotismo, de obscuridade e de obscurantismo. Há um deus átomo, um deus espaço etc. Se a ciência ou a religião triunfam, a psicanálise está acabada.

Panorama: Que relação guardam entre si hoje em dia a ciência e a psicanálise?

Lacan: Para mim a única ciência verdadeira, séria, que se pode seguir, é a ficção científica. A outra, aquela que é oficial, que tem seus altares nos laboratórios, avança tateando enlouquecidamente e começa a ter medo de sua sombra. Parece que também chegou o tempo da angústia para os cientistas. Em seus laboratórios assépticos, cobertos com seus macacões engomados, essas velhas crianças que brincam com coisas desconhecidas, manipulando aparatos sempre mais complicados e inventando fórmulas sempre mais obscuras, começam a se perguntar o que poderá sobrevir amanhã e onde acabarão chegando suas investigações sempre muito inovadoras. Por fim, digo, é tarde demais? Chamem-se biólogos, físicos, químicos, para mim estão loucos. Somente agora, quando estão em vias de destruir o universo, lhes ocorre ao espírito perguntar-se se por algum acaso isso que fazem não seria perigoso. E se tudo der um salto? E se as bactérias tão amorosamente cultivadas em seus laboratórios brancos se tornassem inimigos mortais? E se o mundo fosse varrido por uma horda dessas bactérias com toda a merda que o habita, começando pelos cientistas dos laboratórios? Há três posições impossíveis ditas por Freud: governar, educar e psicanalisar. Adicionaria uma quarta: a ciência. E tanto quanto os outros, os cientistas não sabem que estão em uma posição insustentável.

Panorama: É uma definição bastante pessimista daquilo que comumente chamamos de progresso.

Lacan: Que nada, não sou de maneira alguma pessimista. Isso não vai dar em nada, pela simples razão de que o homem é um inútil, incapaz de destruir-se a si mesmo. Uma calamidade total promovida pelo homem, isso ele próprio consideraria maravilhoso. Seria a prova de que finalmente conseguiu fabricar alguma coisa com suas mãos, com a sua cabeça, sem intervenção divina, natural ou de outra espécie. Todas essas belas bactérias bem nutridas que passeiam pelo mundo, como os crustáceos bíblicos, significariam o triunfo do homem. Mas isso jamais acontecerá. A ciência tem sua boa crise de responsabilidade. A ordem das coisas será restabelecida, como se diz. Eu disse: o real terá a superioridade como sempre e nós, como sempre, estaremos fodidos.

Panorama: Outro dos paradoxos de Jacques Lacan. Atira em nós não somente a dificuldade da linguagem e a obscuridade dos conceitos, mas também os jogos de palavras, os divertimentos linguísticos, os enigmas à francesa e principalmente os paradoxos. Aquele que o escuta ou lê deve se sentir desorientado.

Lacan: Não agrado a todos, digo as coisas muito seriamente. Salvo que se utilize as palavras como os cientistas, dos quais falamos antes, utilizam seus jargões e seus gadgets eletrônicos. Busco sempre me referir à experiência da psicanálise.

Panorama: Você disse: o real não existe. Mas o homem médio sabe que o real é o mundo, tudo aquilo que o rodeia, o que se vê a olho nu, o que se toca, é…

Lacan: Já de cara recusemos este homem médio que, ele, para começo de conversa, não existe, é somente uma ficção estatística. Existem os indivíduos e isso é tudo. Quando escuto falar do homem da rua, dos dados estatísticos, dos fenômenos de massa ou de coisas parecidas, penso em todos os pacientes que vi passar pelo divã do meu consultório em quarenta anos de escuta. Não há um único que seja parecido com o outro, nenhum com a mesma fobia, a mesma angústia, a mesma maneira de falar, o mesmo medo de não entender. O homem médio, quem é? Eu, você, nós, o zelador, o presidente da república?

Panorama: Falamos do real, do mundo que todos vemos…

Lacan: Precisamente. A diferença entre o real, a saber, isso que não anda e o simbólico, o imaginário, isto é, a verdade, é que o real é o mundo. Para constatar que o mundo não existe, que não é, é preciso pensar em todas as coisas banais que uma infinidade de gente estúpida crê que é o mundo. E convido os amigos da Panorama, antes de me acusarem de ser paradoxal, a refletir acerca do que acabam de ler.

Panorama: Sempre mais pessimista, poderíamos dizer…

Lacan: Não é verdade. Não me coloco entre os alarmistas nem entre os angustiados. Ai do psicanalista que não tiver ultrapassado o estado de angústia. Certamente há ao redor de nós coisas horripilantes e devoradoras, como é a televisão, pela qual a maioria de nós se encontra regularmente fagocitado. Mas é unicamente porque as pessoas se deixam fagocitar que se chega a inventar um interesse para aquilo que elas veem. Então há outros gadgets monstruosos igualmente devoradores, os foguetes na lua, as investigações no fundo do mar, etc., coisas que devoram, mas não há que fazer drama por isso. Estou seguro de que quando tivermos os foguetes, a televisão e todas as outras malditas pesquisas da vida, encontraremos outras coisas com que nos ocupar. Há uma revivescência da religião, não é? E que melhor monstro devorador do que a religião, uma feira contínua com a qual entreter-se durante séculos, como já foi demonstrado? Minha resposta a tudo isso é que o homem sempre soube adaptar-se ao mal. O único real concebível ao qual temos acesso é precisamente este e deve-se dar uma razão. Dar um sentido às coisas, como se diz. De outro modo, o homem não teria angústia. Freud não teria se tornado célebre e eu não seria professor do colégio.

Panorama: As angústias, são todas elas sempre desse tipo ou há angústias ligadas a certas condições sociais, a certas etapas históricas, a certas latitudes?

Lacan: A angústia do cientista que tem medo de suas próprias descobertas pode parecer recente, mas o que sabemos daquilo que se passou com eles em outras épocas, dos dramas de outros pesquisadores? A angústia do trabalhador aferrolhado a uma linha de montagem ou ao remo de uma galera é a angústia de hoje em dia ou simplesmente está ligada às definições e às palavras de hoje?

Panorama: Mas o que é a angústia para a psicanálise?

Lacan: Algo que se situa no exterior do nosso corpo, um medo, um medo mas de nada que o corpo — incluído o espírito — possa motivar. Em suma, o medo do medo. Muitos desses medos, muitas dessas angústias, até onde percebemos, têm alguma coisa a ver com o sexo. Freud dizia que a sexualidade para o animal falante que se chama homem não tem remédio nem esperança. Um dos deveres do analista é o de encontrar nas palavras do paciente o nó entre a angústia e o sexo, esse grande desconhecido.

Panorama: Agora que se coloca o sexo em todas as coisas, sexo no cinema, no teatro, na televisão, nos jornais, nas canções, na praia, ouvimos dizer que as pessoas estão menos angustiadas com os problemas ligados à esfera sexual. Os tabus caíram, dizem, o sexo já não dá medo…

Lacan: A sexomania galopante é somente um fenômeno publicitário. A psicanálise é uma coisa séria que comporta, repito, uma relação estritamente pessoal entre dois indivíduos: o sujeito e o analista. Não existe psicanálise coletiva, como não existem angústias ou neuroses de massas. Que o sexo seja posto na ordem do dia e exposto em todas as esquinas, tratado da mesma maneira que não sei qual detergente nos comerciais televisivos, não constitui absolutamente promessa alguma de benefício. Não digo que seja ruim. Mas certamente isso não serve para ajudar com as angústias e problemas singulares. Isso é parte do mundo, dessa falsa liberação que nos é proporcionada como um bem concedido de cima pela assim chamada sociedade permissiva. Mas isso não serve para a psicanálise.

Tradução de Diogo Bogéa

a partir da publicação em espanhol: https://enelmargen.com/2019/02/28/entrevista-a-lacan-el-psicoanalisis-como-sintoma-revelador-del-malestar-en-la-civilizacion/?fbclid=IwAR0kvJBGxrc2m-e8wkHU6ScSJR3to7BrTF38RQYvdC0MuhmDbXtDN3tTD9s

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Diogo Bogéa
Diogo Bogéa

Written by Diogo Bogéa

Professor de Filosofia na UERJ. Doutor e Mestre em Filosofia.

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